No coração do Alto Tâmega, a cidade de Chaves é muito mais do que um lugar: é uma memória viva de séculos de civilizações que moldaram o território com arte, saber e visão. Aqui, cada pedra guarda o eco do tempo e cada monumento é uma ponte entre o passado e o presente, revelando a singularidade de uma cidade que cresceu sobre camadas de história.
A ocupação humana deste vale fértil remonta ao final do III milénio a.C., testemunhada nos vestígios encontrados em povoados como Mairos, Pastoria e São Lourenço. Foram comunidades proto-históricas que, procurando proteção e domínio visual da paisagem, ergueram castros no alto dos montes, onde se defendiam e cultivavam as primeiras formas de vida comunitária. Entre estes, o Castro de Curalha, embora de cronologia diferente, destaca-se como o mais notável e visitável. Hoje, este espaço arqueológico permite-nos imaginar a vida quotidiana da Idade do Ferro, com as suas imponentes muralhas ciclópicas e as casas circulares onde se desenrolava o dia a dia das antigas comunidades.
A verdadeira transformação da região, porém, dá-se com a chegada dos romanos no século I d.C. A importância estratégica da posição geográfica, aliada às águas termais de reconhecidas propriedades curativas, levou à fundação da cidade de Aquae Flaviae, batizada em honra da dinastia Flávia. Sob o governo do imperador Vespasiano e do seu filho Tito, a cidade floresceu, adquirindo centralidade no noroeste peninsular. Foram construídas vias que a ligavam a Bracara Augusta e Asturica Augusta, integrando-a no vasto sistema viário do Império Romano. Até hoje, é possível percorrer parte dessas antigas rotas, como a Calçada de São Lourenço, que serpenteia pelas encostas do Brunheiro, testemunho vivo do passado romano de Chaves.
A ponte de Trajano, concluída em 104 d.C., continua a ser um testemunho desse engenho romano, atravessando o Tâmega com os seus arcos sólidos e exibindo as colunas honoríficas que recordam os governadores, as povoações e legionários que contribuíram para sua construção. Ao lado da ponte, as termas medicinais revelam o culto da água, não apenas como espaço de tratamento e saúde, mas também de sociabilidade, cultura e lazer. As estruturas arqueológicas ainda visíveis no atual Museu das Termas Romanas, tais como piscinas, tanques, sistemas de aquecimento (hipocaustos), canais de drenagem e zonas de circulação, revelam o elevado nível técnico alcançado pelos engenheiros romanos. Esta ligação às águas — primeiro romana, depois medieval e moderna — moldaria para sempre a identidade da cidade, que ainda hoje é conhecida como “Cidade das Águas”.
Com o declínio do Império Romano, o território conheceu novas fases de ocupação. Primeiro suevos, depois visigodos, foram estabelecendo estruturas de poder, e foi precisamente em Chaves que viveu Idácio, bispo e cronista que, no século V, deixou-nos um dos mais preciosos relatos sobre o tempo de transição entre Roma e os reinos bárbaros. As suas crónicas dão-nos conta das invasões, dos conflitos e da instabilidade que marcaram esse período conturbado. A partir do século VIII, o domínio muçulmano pouco se fez sentir, embora a região tenha sido reconquistada relativamente cedo, no século IX, por forças astur-leonesas. A fronteira manteve-se, contudo, instável durante séculos, e foi apenas com a fundação do Reino de Portugal e a ação militar de D. Afonso Henriques que Chaves ficou definitivamente integrada no espaço português.
Durante a Idade Média, Chaves assumiu-se como praça militar de enorme relevância. A sua posição fronteiriça obrigava ao reforço constante das defesas. No reinado de D. Afonso III e de D. Dinis, ergueram-se muralhas e o castelo, cuja Torre de Menagem sobrevive até hoje, convertida em Museu Militar. Subir ao seu topo é partilhar da mesma visão com que outrora se vigiava a fronteira, ainda hoje símbolo maior da cidade medieval. Nas crises políticas que se seguiram, Chaves esteve frequentemente no centro da disputa.
No século XIV, Chaves tornou-se palco de acontecimentos decisivos durante a crise dinástica de 1383-1385. A vila, então alinhada com Castela, foi sitiada pelas tropas de D. João I, comandadas pelo lendário Condestável D. Nuno Álvares Pereira, grande estratega e figura central na defesa da independência portuguesa. O cerco de Chaves, detalhado nas crónicas de Fernão Lopes, culminou na tomada da vila e reforçou a importância militar da cidade na consolidação do novo reino. Após a vitória, Chaves passou a integrar os domínios da Coroa e, posteriormente, o património da Casa de Bragança, estabelecendo uma ligação duradoura à linhagem que se tornaria dinastia régia.
A partir do século XV, Chaves consolidou-se como posse da Casa de Bragança. O Infante D. Afonso, primeiro Duque de Bragança, recebeu a cidade e as suas terras como parte do vasto património da linhagem, assegurando rendas, prestígio e o controlo estratégico desta importante praça fronteiriça. A sua presença permanece emblemática na cidade, celebrada através da estátua que o homenageia na Praça de Camões, lembrando a forte ligação histórica entre Chaves e a Casa de Bragança. Ao longo dos séculos, a ligação entre Chaves e a Casa de Bragança manteve-se viva, até que em 1640, com a aclamação do 8.º Duque como D. João IV, Chaves deixou de ser posse senhorial para regressar à Coroa, espelhando a ascensão da dinastia ao trono de Portugal.
Mais tarde, já no período da União Ibérica, a cidade voltou a ser fortificada, desta vez com estruturas abaluartadas adaptadas à artilharia, dando origem aos fortes de São Neutel e São Francisco. Estas obras transformaram Chaves numa das mais sólidas praças defensivas da fronteira norte. Hoje, caminhar por estas estruturas é sentir a imponência de uma cidade que se reinventou para resistir às ameaças externas. Com o tempo, os fortes foram perdendo importância militar, mas reinventaram-se: o Forte de São Francisco acolhe atualmente um hotel que valoriza o imóvel e permite aos visitantes experienciar a história de forma única, enquanto o Forte de São Neutel continua a ser palco de romarias, como a de Nossa Senhora das Brotas — muito associada aos militares — e de encontros culturais, mantendo viva a ligação da comunidade às suas tradições. Entre muralhas e fortes, Chaves cresceu protegida, preservando os seus principais elementos caraterizadores.
A importância de Chaves manteve-se ao longo da Época Moderna. Durante os conflitos da Restauração, no século XVII, a cidade foi palco de sucessivos cercos e batalhas, com os seus fortes a desempenharem papéis decisivos na defesa contra as investidas castelhanas. Nos séculos seguintes, Chaves voltou a ser cenário de episódios militares, como as invasões francesas, quando os flavienses se distinguiram pela coragem e resistência.
O espírito determinado da cidade ficou simbolicamente marcado a 8 de julho de 1912, data em que se travou o combate entre as forças monárquicas de Paiva Couceiro e as tropas republicanas, comandadas pelo coronel Ribeiro de Carvalho. Este confronto marcou o fim da primeira incursão monárquica e contribuiu decisivamente para o derrube da Monarquia. Ainda hoje, muitas cidades do país recordam esta data, com ruas que evocam “Os Defensores de Chaves”.
Mas Chaves não se resume apenas à sua tradição militar. Ao longo dos séculos, a cidade foi também um importante centro religioso e artístico. No coração da cidade ergue-se a Igreja Matriz de Santa Maria Maior, cujas origens remontam ao período do bispo Idácio. Entre as suas pedras ainda se reconhecem vestígios românicos, como a torre sineira e o pórtico, que nos falam de um passado distante. Ao longo dos séculos, a igreja foi-se transformando, incorporando traços renascentistas, maneiristas e barrocos, como se cada época tivesse deixado nela a sua própria marca, refletindo a evolução da arte em Portugal e a alma cultural de Chaves.
Mesmo ao seu lado, no século XVI, viu nascer a Igreja da Misericórdia, verdadeiro tesouro barroco setecentista, decorada com magníficos azulejos de António de Oliveira Bernardes, um dos maiores mestres da azulejaria nacional. Estas igrejas, entre muitas outras, mostram que a espiritualidade e a arte sempre caminharam lado a lado em Chaves, tornando-a não apenas uma fortaleza, mas também um centro de fé e de beleza.
Nas ruas do centro histórico, o casario tradicional com as suas varandas em madeira e ferro forjado guarda séculos de vivências quotidianas, enquanto as praças, como a de Camões, evocam o pulsar cívico da cidade. Mais recentemente, Chaves abriu-se à modernidade sem perder o vínculo ao passado. O Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso, dedicado ao grande pintor flaviense, insere a cidade no circuito artístico internacional, mostrando como tradição e inovação podem conviver no mesmo espaço.
Assim, falar de Chaves é contar a história de um território que atravessou milénios sem perder identidade. É recordar os povos pré-históricos e os guerreiros do ferro, os engenheiros romanos e os cronistas visigodos, os cavaleiros medievais e os soldados da Restauração, os devotos que encheram igrejas e os artistas que reinventaram a cidade. É olhar para a ponte de Trajano e ver nela não apenas uma obra de pedra, mas uma metáfora da própria cidade: sempre ponte entre tempos, culturas e gerações.
Visitar Chaves é mais do que conhecer monumentos. É percorrer a memória viva de Portugal, sentir o calor das suas águas termais, ouvir o eco das suas muralhas e compreender como, entre guerras, artes e tradições, a cidade se construiu como lugar de resistência, de cultura e de futuro. Chaves é, em suma, uma viagem pelo tempo, um território onde o passado nunca deixou de dialogar com o presente e onde cada passo convida o visitante a participar nessa herança de séculos.